O Software Livre e a Direção Perigosa
fonte: Universo Jurídico
Autor: Paulino R. e Silva
O texto abaixo foi enviado há alguns anos para uma lista de discussão na internet, especializada em Direito e Internet, a Cyberlawyers do Omar Kaminski. Em razão das novas formas contratuais que vão vigorar em relação ao software e à produção intelectual nos próximos anos, e visto que os termos permanecem rigorosamente os mesmos, é interessante relembrar:
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A questão de uma hora estávamos eu, o Omar, o Alexandre e o Luis, indo de Curitiba à Florianópolis, para o evento do “Software Livre”. Íamos no meu carro (observe-se que agora estou levando o que sobrou do veículo à concessionária em Curitiba, enquanto o pessoal seguiu para o evento – São 14:25 hs (dia 22/05/2003), e estou aproximadamente a 200km da Capital Paranaense. Escrevo do guincho, razão pela qual este e-mail só irá chegar na lista a noite – ou amanhã).
O fato é que quando estávamos a uns 120km de Florianópolis, o carro misteriosamente “decolou”, e voou por aproximadamente 10 metros. Até aí tudo bem, pois a decolagem foi bem sucedida. O problema foi na aterrissagem(1), pois o pneu dianteiro do lado direito literalmente explodiu ao tocar o solo, e o carro acertou violentamente a mureta de proteção entre as pistas… Após o carro girar por mais de 500 metros, acertando por diversas vezes as muretas de ambos os lados da rodovia, finalmente acabou. Parte do carro já não mais existia, mas todos ainda respiravam (de maneira mais rápida e ofegante, mas respiravam).
Ocorre que enquanto todos ainda gritavam, me xingavam ou apenas curtiam um momento de apoplexia nervosa, algo incrível aconteceu (2) : percebi que nos poucos segundos que se passaram entre o início e o fim do acidente, eu havia adquirido uma nova perspectiva em relação ao software livre, e correlacionado as implicações e fatores de sua adoção sob a égide casuística da existência humana. A direção perigosa da padronização “restritiva” das ferramentas que possibilitam (e cada vez mais possibilitarão) a interação globalizada do pensamento tornou-se clara. O “copyright” é um perigo à velocidade com que a T.I.C (Tecnologia da Informação & Comunicação) avança.
Parece-me claro que estamos atingindo a “massa crítica” para que a interação globalizada atinja um enfoque direcionado e prático à integração do “individual” ao “coletivo”. Quando isto tomar vulto, a sociedade irá “decolar” para um próximo estágio de integração intelectual.
O problema não será a decolagem, mas sim a aterrissagem. Se todo o peso do processo cognitivo estiver concentrado em um sistema conservador (de direita), que atualmente está na ´dianteira´ do desenvolvimento de soluções “fechadas” e resguardadas pelo “copyright”, ao tocarmos novamente o solo, o “pneu” irá explodir, ameaçando, limitando ou impedindo o fluxo de informações, ou ainda de maneira metafórica,
tirando de rota a liberdade intelectual que forma o processo cognitivo coletivo. Neste ponto, é interessante citar as palavras de Thomas Jefferson, e que foram proferidas pelo Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no evento da Berkley University e FAPESP, o I-Law, que ocorreu no Rio de Janeiro a em Março de 2003:
Aquele que recebe de mim uma idéia tem aumentada a sua instrução sem que eu tenha diminuída a minha. Como aquele que acende sua vela na minha recebe luz sem apagar a minha vela. Que as idéias passem livremente de uns aos outros no planeta, para a instrução moral e mútua dos homens e a melhoria de sua condição, parece ter sido algo peculiar e benevolentemente desenhado pela natureza ao criá-las, como o fogo, expansível no espaço, sem diminuir sua densidade em nenhum ponto. Como o ar que respiramos, movem-se incapazes de serem confinadas ou apropriadas com exclusividade. Invenções, portanto, não podem, na natureza, ser sujeitas à propriedade.”
Thomas Jefferson
A sociedade ensaia os primeiros passos na eterna luta para subjugar o imponderável em favor do conhecimento amplo e compartilhado, cujo objetivo é a melhoria na qualidade de vida de todo um povo e das gerações vindouras. O caminho que segue para isto é a de uma sociedade capitalista, que enfatiza o consumo como base de estrutura e subsistência. O resultado é a
polarização do domínio da tecnologia às grandes empresas (Microsoft, IBM(3), Cisco etc), que tendem a manter o poder pelo controle da informação e conhecimento. Sua principal ferramenta é o “software proprietário”, que mantém o “cliente” nas mãos do detentor do “copyright”, sem a possibilidade de expandir as capacidades do produto adquirido às suas próprias necessidades. Neste modelo existe muito pouco espaço para que soluções individuais enriqueçam um modelo cooperativo, integrado e mundial. O
problema é colocar tais conceitos como bases do avanço da Tecnologia da Informação. Avançamos por uma estrada perigosa, com um carro que ainda não é conhecido inteiramente, e guiado por várias motivações (motoristas). Não bastassem estes problemas, andamos em alta velocidade, a as rodas (bases) não permitem mobilidade. Certamente iremos bater mais e mais nas “muretas” de proteção da pista, a que chamamos de “copyright”.
Assim como o homem dos primórdios da civilização necessitava compreender e dialogar com a natureza, para domá-la, apaziguá-la e respeitá-la(4), a fim de tornar o destino mítico passível de mudança, o homem moderno precisa integrar-se cada vez mais na sociedade atual, cuja especialização e interdependência acentuam-se exponencialmente (5) . Parece-me claro que as ferramentas e estrutura (jurídica e social) devam permitir que o indivíduo conheça, adapte e aperfeiçoe o meio a que Bill Gates chamou de “Super
Estrada da Informação”. Não falo em uma nova versão do (laisse faire, laisse passer), pois como já disse, o “copyright” é uma “mureta de proteção” a serviço da criação intelectual. A resposta não está no dualismo entre “fair use” e “fare use”, mas sim no
equilíbrio dos opostos.
A dicotomia entre liberdade intelectual e “copyright” se constituem em uma discrepância de conceitos, que parecem ser herança do dualismo de nossa cultura ocidental (céu e inferno – bom e mau – certo e errado…). Talvez a resposta não esteja na tecnologia, ou sequer no direito. Parece-me que o princípio norteador mais coerente que se apresenta para o impasse tem mais de cinco mil anos, e vêm da filosofia chinesa. O TAO, e posteriormente o Tao-te ching, que são a regra e a negação da regra, o caminho do meio que norteia, mas não condena, considerando toda a estrutura como um só organismo e com um objetivo comum. Pode parecer exagero considerar o Direito e a Internet sob um prisma filosófico oriental (e por certo muitos vão achar que devo ter batido a cabeça no acidente), mas a despersonificação do indivíduo no meio digital permite, sob um prisma mais transcendental, um “encontro de almas” e conhecimento jamais visto em nossa história. É uma linda estrada na qual seguimos rapidamente… Mas talvez estejamos olhando para o “lado” errado da pista.
Notas do Texto
(1) – É interessante observar que o maior número do acidentes aéreos ocorrem nas decolagens ou nas aterrissagens. Os maiores
estragos (e mortes) são causados nas aterrissagens. Isto lembra de um de meus últimos vôos, quando derrubei um “Skylane” em Faxinal, interior do estado… Mas isto é uma outra história…
(2) – Observe-se que em situações de “stress” as pessoas reagem de formas distintas. O perigo eminente pode haver uma dissociação do processo cognitivo, que integrada ao aumento da atividade cerebral pode levar à “insights” momentâneos. A dissociação também leva a uma “desconexão temporal associativa”, razão pela qual muitas pessoas enxergam as situações de “stress” em “câmera
lenta”, ou ainda, vêem “a vida passar por seus olhos” em frações de segundo. Walter B. Cannon (1871 – 1945) têm alguns artigos bem interessantes nesta área. – Pessoalmente, acredito que estas situações podem estimular o cérebro ou o sistema digestivo… Por sorte, no caso do acidente acima, a reação psicológica estimulou apenas meu córtex.. .
(3) – Um fato interessante é a própria história dos micro-computadores, em que a IBM, nos primórdios do computador pessoal (PC), fazia máquinas limitadas e lentas, propositalmente, para que estas não ameaçassem seu principal produto, que eram os MainFrames. É significativo que ainda hoje nós utilizemos um padrão de processamento ultrapassado (os processadores x8086), quando a atual tecnologia permite dispositivos bem mais modernos e baratos… Por certo, a portatibilização e
incompatibilidade com os atuais “softwares proprietários” tornam a iniciativa pouco atrativa, do ponto de vista comercial.
(4) – As primeiras tentativas neste sentido datam de 2500 anos atrás, e surgiram no vale do ´Huang-Ho´ (Rio Amarelo). Estas iniciativas deram surgimento ao “Fung-Shui”, e visavam a elaboração de métodos de análise de alterações climáticas, composições dos solos, pesquisas minerais e previsões meteorológicas. (tais referências encontram-se em registros e documentos históricos – mas não tenho sua relação, pois ainda me encontro no “guincho”…)
(5) – Certa vez, (em u´a monografia, se não me engano) comparei a civilização moderna às colônias de insetos gregários, onde cada componente especializa-se profundamente em aspectos determinados da sociedade, aumentando a capacidade coletiva, e diminuindo a possibilidade de sobrevivência individual. Na T.I.C. (Tecnologia da Informação & Comunicação), isto é chamado de capacidade intelectual coletiva.
(6) – Não há de se determinar quais serão as ferramentas de interação, mesmo em um futuro próximo, pois além de ferir-se o pressuposto da “neutralidade tecnológica”, o perigo da capacidade criativa humana é latente. Como disse Carl Seagan, em seu livro “Bilhões e Bilhões”: As invenções mais fantásticas da humanidade são aquelas que não podemos prever… “
(7) – Existem várias iniciativas neste sentido, a exemplo das “Creative Commons”…
A obra O Software Livre e a Direção Perigosa de Paulino Rocha e Silva foi licenciada com uma Licença Creative Commons – Atribuição 3.0 Não Adaptada.
Com base na obra disponível em www.uj.com.br.
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